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A mulher, o tráfico e o antiproibicionismo.

Quem fuma maconha sabe bem do estigma social do “maconheiro”: como a nossa legislação nesse sentido é muito atrasada e ainda confunde o usuário e o traficante, é comum que as pessoas deixem de “sair do armário” e se assumir como tal. Se existe este estigma para homens, ele é redobrado para mulheres: um sinal disso é o fato de, mesmo no âmbito da indústria cultural, em que se fala mais abertamente sobre o tema, poucas figuras mulheres conhecidas se assumem como “weed girls”.

A política de “guerra às drogas” promoveu com amplo apelo midiático a falsa informação que a maconha é uma droga perigosa e que as pessoas se tornam “zumbis”. Esta política tem efeito multiplicado para as mulheres que muitas vezes sofrem agressões e violência nas batidas policiais. Sob o espectro da “vadia”, as mulheres maconheiras são revistadas de forma muito mais abusiva que um homem (o que por si só já é ilegal, mesmo que aconteça com freqüência), e não são poucos os casos de abuso sexual pela própria polícia, como infelizmente ocorre com boa parte das mulheres negras e pobres.

A realidade é que a guerra às drogas é a principal responsável pelo encarceramento das mulheres negras, geralmente presas ou portando pequenas quantidades ou, na maioria das vezes, por associação ao tráfico. A política de criminalização da pobreza sob o véu da falida guerra às drogas, tem elevado em 570% o encarceramento feminino. Entre os anos 2000 e 2014, segundo os dados do Infopen (Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias) há atualmente em média 38 mil presas, das quais 68% detidas por crimes não violentos, como o tráfico de entorpecentes. O lugar que estas mulheres ocupam no tráfico é na maioria das vezes de pequenas vendedoras que fazem do comércio ilegal de maconha a fonte de renda extra familiar, transportam maconha em pequenas quantidades para seus companheiros e familiares presos, ou simplesmente estavam presentes durante o flagrante mesmo não sendo usuárias.

O perfil destas mulheres são de chefe de família, com filhos pequenos, vítimas de violência doméstica muitas vezes obrigadas a assumir os negócios e dívidas deixadas quando o parceiro é preso ou morto. Uma vez presas, são submetidas às piores condições carcerárias e suas famílias ficam desestruturadas. A falta de condições adequadas como creches para as mulheres mães, cadeias específicas que não as releguem à cadeias mistas, a distância da cidades em que há presídios femininos que dificulta visitas, até mesmo a precária condição social de pagar os elevados custos da família com transporte público para manter contato com as encarceradas contribuem para o processo de abandono dessas mulheres.

Ou seja, as mulheres negras passam a vida ouvindo uma propaganda de família que não condiz com sua realidade de trabalhadora que não tem o mesmo tempo de se dedicar aos filhos, e o estado não dá garantias mínimas que alivie esse sofrimento psicológico e material. Se mães de crianças com epilepsia sofrem pela política que criminaliza o uso e o comércio da maconha que as impedem de obter um benefício substantivo no alívio das dores e no tratamento da doença, para as famílias das mulheres negras a legalização da maconha significa não ter mães presas, filhos ou maridos mortos pelo tráfico ou pela atuação do braço armado do estado com a polícia militar. A nossa solidariedade não pode ser seletiva.

Ainda assim, as mulheres não possuem os mesmos direitos que os homens ao serem encarceradas. Um exemplo é o direito ao indulto, direito concedido ou não pela Presidência da República que pode perdoar ou reduzir a pena da mulher presa. Esta política pode beneficiar mulheres condenadas a cinco anos de reclusão por associação a tráfico. Para ter uma ideia da discrepância entre homens e mulheres no acesso ao direito, no Estado de São Paulo no período entre 2010 a 2014, 6.510 homens receberam o indulto natalino; enquanto que para as mulheres esse saldo foi de 142 presas. Porque elas não tem o direito de visitarem suas famílias, seus filhos e familiares? Porque estas mulheres ficam retidas?

Nós mulheres estamos nas lutas pelas liberdades individuais mas também queremos saber quem lucra com a política de guerra às drogas que encarcera as mulheres e mata a juventude negra? Quem lucra com a alta medicalização do corpo feminino? A que interesses atende a prisão e o domínio desse corpo? Que banco guarda o dinheiro do tráfico – não o do “aviãozinho”, mas os grandes donos deste negócio milionário? Quem são os verdadeiros chefões, já que o crime também é organizado por dentro do próprio estado?

A luta pela legalização é, portanto, uma luta em defesa da vida das mulheres, em especial pobres e negras, mas também de sua qualidade de vida: seja pela diminuição dos encarceramentos desnecessários, seja pelo fim do sofrimento com a morte de seus filhos numa guerra inútil.

Antiproibicionismo, liberdade e o corpo da mulher

Compreendemos que a luta antiproibicionista é uma luta por liberdades, e não podemos falar de luta por liberdades se não fizermos a relação que tem com as mulheres e seus direitos. Vivemos numa sociedade ditada por regras e padrões que justificam o modo de vida dos que sempre tiveram seus direitos garantidos na história. No Brasil a classe dominante persiste até os dias de hoje, seja descendente de famílias e agregados donos de capitanias hereditárias, senhores de engenho e de escravos ou coronéis, a representantes de empresas multinacionais e da “casta política”.

O rebatimento desta tradição política arcaica e seu conjunto de falsos argumentos que a sustenta no campo ideológico tem consequências mais graves para as mulheres. O estado brasileiro é dirigido em sua maioria por representantes masculinos e com origem de classe nos que sempre mandaram no país. São estes representantes políticos que não garantem a legalização do aborto nem a legalização da maconha e mantém uma política que naturaliza a morte de milhares de mulheres vítimas do aborto clandestino, como também as encarceram, matam seus filhos, maridos e familiares pela política de guerra às drogas. No entanto sabemos que muitas vezes são estes da casta política que lucram com o tráfico no “atacado”, como pudemos vivenciar no episódio em que encontraram meia tonelada de cocaína no helicóptero do senador Perrela, até hoje não investigado.

Ainda que saibamos que o consumo da erva é generalizado entre homens e mulheres,, quando se retrata”a maconheira”, sofremos múltiplos preconceitos como: somos taxadas de “loucas”; nossa autonomia para comprar para o consumo é reduzida; acreditam que somos incapazes de fazer o próprio baseado; além de sofrermos com a objetificação dos nossos corpos e nosso prazer, para citar alguns.

As mulheres não são ensinadas a conhecer e explorar o próprio corpo, de experimentar as diversas facetas do prazer, saber como seu corpo se manifesta e reage a determinados estímulos, mesmo sendo o prazer uma parte essencial na vida de qualquer ser humano. Já os homens aprendem que eles devem ter o acesso ao prazer, e o passaporte para esse trunfo é o corpo da mulher. Neste caso, a educação sexual para as mulheres é hegemonicamente na concepção que ela deve dar prazer ao homem.

Por este motivo é que as mulheres se sentem culpadas quando são assediadas, agredidas ou abusadas sexualmente, porque aprendem erroneamente que ela provocou, que ela foi a culpada e que poderia ter evitado a situação. Quando estão sob efeito de drogas e sofrem agressões, essa culpa se manifesta de forma mais intensa, pois a droga atuaria como um fator catalizador do abuso, inclusive perante a sociedade. Pode até se admitir que uma mulher sóbria não é culpada pelo estupro, que isso foi uma violência. Porém se esta mulher estiver sob efeito de drogas ainda há uma concepção de que “ela deu motivos”. É como se o uso da droga justificasse a violência, ou pior, fosse um convite. No conjunto de falsos argumentos da ideologia dominante, talvez o mais perverso seja essa ideia de que a forma como a mulher se comporta pode causar a sua própria violência, que ela é a culpada por ter passado por alguma situação de perigo da sua integridade física. E o pior é que ela acredita.

Estas são consequências frutos de uma educação conservadora que não debatem abertamente com as meninas. A política antiproibicionista impede que as jovens cresçam sabendo dos efeitos que cada droga pode causar no seu organismo. Mesmo as drogas legalizadas, como o café, o açúcar e as drogas farmacêuticas, ainda carecem de maior esclarecimento sobe efeitos e consequências com o uso prolongado. Porém, quando se trata de maconha, o que aparece nas escolas e em propagandas é falso e sem relação com as pesquisas científicas que versam sobre o tema. Por exemplo, nem sempre a maconha foi proibida no Brasil. As leis que iniciaram uma política de perseguição à maconha datam períodos próximos a abolição da escravidão. Muito popularizada entre os negros, a maconha foi proibida como forma de controle social de um grupo. A perseguição ao uso da maconha, também faz parte da política de perseguição ao samba, às religiões de matrizes africanas, ao jongo e à capoeira, todas as formas de resistência da cultura negra brasileira.

E são as mulheres negras e pobres a população mais atingida pela política de guerra às drogas. No que tange a hipersexualização, as mulheres negras sofrem mais por serem negras e terem seus corpos objetificados pelo racismo que remete a tempos coloniais. Como escravas, as mulheres negras foram submetidas há séculos de abuso pelos seus senhores, sendo consideradas uma raça inferior e tratadas como objetos de prazer masculino. O imaginário falso de que as negras são “mais fogosas”, construído desde os tempos da escravidão, serve para que até hoje o racismo e o machismo andem de mãos dadas para oprimir esta mulher, tendo o peso histórico da objetificação de seu corpo na relação de escravidão em tempos de outrora.

Lutamos pela legalização, pelo nosso direito ao prazer, pelo direito de fazer o que quiser com nossos corpos sem que com isso sejamos tratadas como objetos à serviço dos desejos masculinos. Queremos a legalização da maconha para quebrar paradigmas que mulheres não podem usar drogas, para que mulheres não sejam assediadas e violentadas pelo aparelho repressor do estado, que não sejam encarceradas e abandonadas pelas políticas públicas. Queremos a legalização da maconha para garantir seu cultivo e não ter que se submeter às relações do tráfico para conseguir a cannabis, queremos plantar e usar a maconha para a diversidade de benefício que ela nos traz.

Queremos legalizar a maconha para construir uma sociedade mais livre, mais democrática e igualitária, e só teremos essa chance se a luta pela legalização da maconha também for feminista. Fora desse contexto, ela não passará de uma retórica vazia de liberdade e não contribuirá no sentido de alterar o conjunto de falsas ideias sobre a o uso da maconha. O debate sobre liberdade seguirá limitado se nós mulheres não levarmos nossa consigna que mexeu com uma, mexeu com todas. Somos as mais prejudicadas pela sociedade hipócrita, racista e conservadora, onde a ideologia da classe dominante quer manter a mulher no papel de subjugada pelo homem, marcada pela falta de direitos sociais e pela solidariedade seletiva. Quando uma mulher avança nenhum homem retrocede porque nós mulheres carregamos o fardo da história da luta por igualdade e liberdade de fato, e sempre nos enfrentamos com as forças mais conservadoras para garantir nossos direitos.

Denunciamos a falsa democracia que retira direitos das mulheres, garante o domínio do homem e do estado sobre nossos corpos e não garante que sejamos donas do próprio destino. Agarramos a primavera nos dentes e quando nos dispomos à luta o passo é para frente. Juntas podemos legalizar a maconha, libertar as mulheres em situações de cárcere e promover uma cultura de direito ao prazer, à saúde e ao lazer para nós. A verdadeira liberdade só será com igualdade.

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